Travessia
No rasgo dos teus versos
sensação esquisita de incesto
trair meu coração
no rasgo dos teus versos
como se fosse desonesto
furtar daquele instante
fugaz um momento eterno
"A Carta", Alfredo Keil, 1874
Não Tenho Tempo para Poesia (Àquele perdido no espaço e no tempo)
não tenho tempo para poesia
os ponteiros na parede apenas pontuam meu pulsar
por isso doem minhas têmporas
o tempo muda e muda a temperatura
o tempo é mudo, minha pena é temperamental
sinto que meu poema não tem tempo
e pressinto que vem vindo um temporal...
"The soul of the rose", John Willian Waterhouse, 1908.
A Essência é Ar (para quem voa)
Ato de Contrição
Senhor, não imploro teu perdão
Explicando-Te se pequei ou não
Pois se meu destino é contra Ti pecar
Não há porque perdoar
Se me enveredei por outras campinas
É porque viver cerceada não podia
E se antes me vias perdida entre as colinas
Hoje me tens nos Teus prados arrependida!
"Indredulity of Saint Thomas", Caravaggio, 1602.
Metas
Outono
Gostaria perder-me no outono
Em algum bosque de ouro
Num adeus, me diriam: "_tolo"
E meus rastos já não teriam dono
Mas esconder-me entre as amarelas
Fartas folhas e tantas
Entristeceria em ocre medonhas
O desabotoar das próximas gérberas!
"A Primavera", Monet, 1886.
Pintura
pinta-se uma paisagem
em minhas retinas
talvez uma miragem
pincelada por fadiga
precisando-se vertigem
factual e fluida
com tintas de fuligem
simulando mente em fuga
"Mulher lendo sobre fundo negro", Matisse, 1939.
Alusão
O que tenho
O que não tenho
senão os anéis no anular?
O que não tenho
senão os trapos a me indumentar?
O que não tenho
senão os sapatos a me civilizar?
_ O que eu tenho, de fato, é nuclear!
"Par de sapatos", Van Gogh, 1887.
Sol
A cada ouro, a aurora
Desponta no horizonte
Em raios crepitantes
Como sorriso se renova
Energia de persistente clarão
Timidez ausente sob as montanhas
Ou trilha sobre as águas mansas
Que supera as cinzas da escuridão
É fonte reluzente e ofuscante
Fogo que recorda e emana
Fervor que clama e chama:
Na vida só há o instante!
"Willows at Sunset", Van Gogh, 1888.
Essa parte que cala
Essa parte rígida que cala
Em mordaça apaziguada
É também adaga que transpassa
Os espaços contidos n'alma.
Essa parte fria que cala
É vão adormecido em calhas
Animal contido em jaula
Flor que não mais exala.
Só não me peçam para negá-la
Pois que em cruz já esteve ilhada
Não poderia mais abandoná-la
No leito escuro das valas!
"Philosopher in Meditation", Rembrandt, 1632.
Ombros
Números
Sem palavra, nem cara
Na ausência do nome
Algo se mascara
Algo se massacra
Na esfera da carne
A recôndita alma
Limitada em placas
Impressão aparente
Em senhas registradas
Que não se expande
Identifica ou dignifica
É ínfima, exangue
É algarismo potencializado
É amorfa e reparte
É o contrário
É o ser massificado
Quantia disfarçada
Em cifra transformado
Há fome onde não há vocábulo
Anestesiados atos
Que provocam infartos
Na ausência do nome,
A miséria do homem...