abraço




às vezes meus braços são de aço
às vezes são só laços
e são, às vezes, sem embaraço
meu próprio baço

e mesmo assim

só caçam ossos, o cálcio de outros braços
para cessar os traços dos espaços
no estrado, no colágeno
por um breve e bravo instante

no tácito e impávido teu abraço




"Fulfillment", detail of "Tree of life", Klimt, 1909.

vitória-régia


por que me atraem os solos áridos
com suas pedras e cactus?

não por que sou uma bromélia
briófita sentinela

que sempre estou à espera de um sedento
perdido em campo ermo

e sendo eu aquela de úmidas pétalas
uma miúda vitória régia

que seguirei meu destino
nas superfícies de um sereno rio...




"Women by the water", Seurat,?.

flores incógnitas


por que insisto em ofertar gérberas
se continuam a lançar pedras?

por que cultivo margaridas
num terreno de tantas feridas?

por que semeio girassóis
buscando um calor que me corrói?

por que adoro violetas
em meio às cores neutras?

por que busco tulipas
num deserto à míngua?

por que tenho uma flor de lótus
cercada de destroços?

por que me sorriem orquídeas
nas paredes demolidas?

por que me chamam as rosas
à tela de natureza morta?

por que conservo um jardim
no estrato mais estúpido de mim?




"Poppy Field at Vetheuil", Monet, 1879.

silêncio



eu amei o silêncio
o amei mais que pude
até certo tempo

e ele falava
falava mais que todo mundo
e tinha um defeito

o silêncio não silenciava
e todas as suas sílabas
tinham acento

sua voz sibilante
sussurrava, sussurrava
com o vento

e toda vez que ela passa
deixa algo doendo
desalento...

silêncio aqui dentro



"Still Life with Skull", Cézanne, 1900.

briga com um poema



Eu briguei com um poema
Um poema sem morfema
Que a mente não traduzia
Nem à pena nada dizia...

Ahh eu nunca fiquei de mal de ninguém!
Por que será que esse poema não engrena?

Um poema assim tão grande
Mas que só em mim se expande e não além?

Ai ai, eu não sou de intriga, Dona Poesia!
Façamos as pazes
Encontremos as frases
Que tudo vai bem...



"A Childhood Idyll", Bouguereau, 1900.