O poema e a cigarra


A cigarra

com sua bocarra

algo anunciava pela madrugada.


O poema por sua vez

no travesseiro de pena

deitava a chuva que ela anunciara.




"Golconde", Magritte, 1953.


Ópio


verti-me adulterado desde que te conheci

me corrompi, despertei de todo meu ócio

de tal modo que todos os caminhos que percorri

desembocaram nas tuas trompas de falópio



"Sleep", Gustave Courbet, 1866.

Pena



entre nuvens

minha mente

a voar


como penugem

o que sente

se afastar


perto do lume

o remanescente

é penar




"Couple with a Parrot", Pieter de Hooch, 1668.


Policromia


Há papoulas nos jardins internos da masmorra.

Há vermelho-sangue

Há roxo-equimose.

Há azul-celeste, torpe.

O verde que me deste.

Desbotados, exangues, presos.

As cores de Kahlo foram acobertadas

Pelo telhado em branco-gelo!




"As Duas Fridas", Kahlo, 1939.


Latência


Espere

Experimente

Está lá tente



"Noite Estrelada", Van Gogh, 1889.

Ponto Cego (Resposta)


dizem-me

para olhar a cor

da tinta

para sentir a luz

advinda

tocar-me

as retinas

o calor na pele

de melanina

e na mente fluir

a serotonina

mas

se em meu corpo energia houver

ainda

que seja eu

a abrir as cortinas

que seja eu

a abrir as cortinas!




"El sueño de la razón produce monstruos", Goya, 1799.

Aquarela (Pergunta)


a cor da janela

a cor amarela

a cor que vem dela

a cor aquarela

a cor a ti apela

a-corda bela




"The Red Kerchief:Portrait of Camille", Monet, 1878.

* Não Tenho Tempo para Poesia



não tenho tempo para poesia


os ponteiros na parede apenas pontuam meu pulsar


por isso doem minhas têmporas


o tempo muda e muda a temperatura


o tempo é mudo, minha pena é temperamental


sinto que meu poema não tem tempo


e pressinto que vem vindo um temporal...




*Republicação para o Tertúlia Virtual.


"A Persistência da Memória", Dali, 1931.

A Pedra


tentei extrair poesia da pedra

briguei, gritei, protestei

entretanto

me entreguei, tropecei,

protelando como sempre

a pedra que não triturei



"Girl with a pearl earring", Vermeer, 1665.

Espermanência


o meu gozo é sem fim

seja no teu contentamento

seja no teu desfalecimento

ainda espermaneces em mim




"Sleeping Cupid", Caravaggio, 1608.

Apontador


a dor aponto

pontuo a dor

no ponto da dor

o ponto, a ponta,

a ponte, a dor

aponto a dor

apontador




"Mulher chorando", Picasso, 1937.

Pedido de Perdão a Teseu Perdido


perdoe essa criatura

de alma nua e crua

cuja poesia era tua


perdoe a envergadura

sob todos os tipos de luas

da minha pena humilde e absurda


... ... ... ... ... ... ... ...


e por fim


perdoe a ingenuidade

e a tenra vaidade

de que tecido encontrasses

em alguma extremidade

o fio de Ariadne




"Ariadne em Naxos", John Willian Waterhouse, 1898.

Marcapasso





"Several Circles", Kandinsky, 1926.






Vaidade


vem idade

viril idade

idade vil

vã idade

invade

idade vai

se esvai

vaidade




"Reprodução Proibida", Renè Magritte, 1937.