Dueto Descaracterizado



Pássaros sem asas
só voam em metáforas!
"Fall of Icarus", Brueghel, 1560.

Travessia


meu amor de trópicos

aos pólos te levou

no meio ficou

a linha do Equador...


_ Alguém tem um picador de gelo?




"Os Caçadores na Neve", Pieter Brueghel, 1565.

No rasgo dos teus versos


sensação esquisita de incesto

trair meu coração

no rasgo dos teus versos


como se fosse desonesto

furtar daquele instante

fugaz um momento eterno




"A Carta", Alfredo Keil, 1874




não tenho tempo para poesia


os ponteiros na parede apenas pontuam meu pulsar


por isso doem minhas têmporas


o tempo muda e muda a temperatura


o tempo é mudo, minha pena é temperamental


sinto que meu poema não tem tempo


e pressinto que vem vindo um temporal...




"The soul of the rose", John Willian Waterhouse, 1908.

A Essência é Ar (para quem voa)




São verbos de primeira conjugação:


SonhAr.

AmAr.

RespirAr.




"Mount Fuji and flowers", David Hockney, 1972.



* Quem desejar, pode outros verbos conjugar...

Ato de Contrição




Senhor, não imploro teu perdão

Explicando-Te se pequei ou não


Pois se meu destino é contra Ti pecar

Não há porque perdoar


Se me enveredei por outras campinas

É porque viver cerceada não podia


E se antes me vias perdida entre as colinas

Hoje me tens nos Teus prados arrependida!





"Indredulity of Saint Thomas", Caravaggio, 1602.


Metas



Metas:


Meta

fora

Meta

dentro


Meta, fura!

Meta, fira!

Meta, fera!


Me-tá-fo-ra.




"Woman with a parrot", Courbet, 1866.

Outono




Gostaria perder-me no outono
Em algum bosque de ouro
Num adeus, me diriam: "_tolo"
E meus rastos já não teriam dono

Mas esconder-me entre as amarelas
Fartas folhas e tantas
Entristeceria em ocre medonhas
O desabotoar das próximas gérberas!




"A Primavera", Monet, 1886.

Pintura




pinta-se uma paisagem
em minhas retinas

talvez uma miragem
pincelada por fadiga

precisando-se vertigem
factual e fluida

com tintas de fuligem
simulando mente em fuga




"Mulher lendo sobre fundo negro", Matisse, 1939.

Alusão




te encontro em cada vão
te encontro nas esquinas

te encontro em todo canto
te encontro em outras línguas

te encontro em toda parte
te encontro em outras sinas

a ti fazer alusão
é aludir minha ilusão...




"La Grande Odalisque", Ingres, 1814.

O que tenho




O que não tenho
senão os anéis no anular?
O que não tenho
senão os trapos a me indumentar?
O que não tenho
senão os sapatos a me civilizar?

_ O que eu tenho, de fato, é nuclear!




"Par de sapatos", Van Gogh, 1887.

Sol


A cada ouro, a aurora

Desponta no horizonte

Em raios crepitantes

Como sorriso se renova


Energia de persistente clarão

Timidez ausente sob as montanhas

Ou trilha sobre as águas mansas

Que supera as cinzas da escuridão


É fonte reluzente e ofuscante

Fogo que recorda e emana

Fervor que clama e chama:

Na vida só há o instante!




"Willows at Sunset", Van Gogh, 1888.



Essa parte que cala


Essa parte rígida que cala

Em mordaça apaziguada

É também adaga que transpassa

Os espaços contidos n'alma.


Essa parte fria que cala

É vão adormecido em calhas

Animal contido em jaula

Flor que não mais exala.


Só não me peçam para negá-la

Pois que em cruz já esteve ilhada

Não poderia mais abandoná-la

No leito escuro das valas!




"Philosopher in Meditation", Rembrandt, 1632.

Ombros


possuo dois precipícios

onde quedam-se as dores

dois grandes abismos

onde suicidam-se amores

de tão fortes e desvalidos

suportam o mundo

e as alças do vestido!




"Mulheres peneirando o trigo", Courbet, 1855.

Números


Sem palavra, nem cara

Na ausência do nome

Algo se mascara


Algo se massacra

Na esfera da carne

A recôndita alma


Limitada em placas

Impressão aparente

Em senhas registradas


Que não se expande

Identifica ou dignifica

É ínfima, exangue


É algarismo potencializado

É amorfa e reparte

É o contrário


É o ser massificado

Quantia disfarçada

Em cifra transformado


Há fome onde não há vocábulo

Anestesiados atos

Que provocam infartos


Na ausência do nome,

A miséria do homem...


"Woman holding a balance", Vermeer, 1665.

Tu


Tu és raiz quando me espalho

és caule em mim suportado

és folha em mim ornado

és fruto em mim maturado

Tu és seiva. Eu sou orvalho.


"O beijo", Gustav Klimt, 1908.


Gotas de Chuva


ofuscantes e reluzentes

brincam de guerra

turvas e transparentes

as lágrimas dela


no verso do vidro

gozam-me de lá

enquanto incontido

fico cá a contemplar


abundantes e ligeiras

a cair competem elas

primeiras e derradeiras

na soleira da janela!




"Férias de Hegel", Magritte, 1958.

Espelho Sentido


sem ti

senti

sentido ter

sentir ser

sem ter sido

sentir ter

sem ter tido

sentido ter

sentir

sem ti

senti



"Narcissus", Caravaggio, 1599.

Nada Calmo


falo ou calo

calo ou falo

nado no lago

largo d’alma


falas...?

a gola me cala

cola colada

engasgos

talas e talos

entalados

calas...?


no largo d’alma

no lago nado

nada calmo...



"Sun setting over a lake", Willian Turner, 1840.